Direito Tributário na Era Algorítmica: Quando a Lei Vira Instrução



Imagine um futuro em que, em vez de uma mesma lei para todos, o governo passe a enviar ordens personalizadas, feitas para cada pessoa, de acordo com o momento, o lugar e a situação. Essa ideia aparece num trecho marcante do livro Diálogos sobre Teoria Geral do Direito (p. 96), do jurista Tercio Sampaio Ferraz Junior. Ele diz que talvez o Direito funcione melhor se, no lugar de normas gerais, usarmos instruções específicas, feitas por sistemas inteligentes. Isso pode parecer mais eficaz, mesmo que se perca um pouco do significado histórico das leis.

O exemplo que ele usa é o trânsito. Hoje, todos obedecem aos mesmos sinais: um semáforo vermelho significa "pare" para todos. Mas, no futuro, pode ser que cada carro receba uma mensagem diferente — dizendo se pode avançar, parar ou reduzir a velocidade — com base em sua localização, horário, direção e até no trânsito ao redor. Um algoritmo, como se fosse um maestro digital, organizaria tudo em tempo real. Resultado: mais fluidez, menos acidentes, menos espera.

Essa ideia é sedutora. Sedutora porque parece moderna, rápida, eficiente. Sedutora porque promete resolver problemas do dia a dia com inteligência e praticidade. Mas é aí que mora o risco. Quando tudo parece funcionar bem, muitas vezes a gente esquece de fazer as perguntas importantes: quem está por trás dessas instruções? Com que critérios? Com que controle?

No trânsito, essa lógica pode funcionar bem, porque todos querem o mesmo: segurança, organização e agilidade. Não há conflito direto entre as partes. Mas no mundo do Direito Tributário, a realidade é outra. Aqui, o contribuinte quer pagar menos, e o Estado quer arrecadar mais. Não há harmonia, há tensão. Não há convergência de vontades, há disputa. E onde há conflito, não se pode simplesmente trocar o debate público por decisões automatizadas. Na prática, o mundo tributário já vive os primeiros passos dessa transformação. Ferramentas como o SPED, a Nota Fiscal Eletrônica e os sistemas de cruzamento de dados mostram que o cumprimento das obrigações fiscais está cada vez mais técnico e automatizado. Há ganhos nisso, claro. Mas também há riscos: o contribuinte muitas vezes nem entende como aquela decisão foi tomada, nem sabe a quem recorrer. Estamos saindo de um modelo baseado em leis universais e caminhando para comandos personalizados, cada vez mais escondidos nos códigos dos sistemas. E isso muda tudo. Porque muda a forma como o cidadão se relaciona com o Estado. Muda a forma como o Direito se apresenta. Muda a forma como a justiça é construída — ou deixada de lado.

Nosso sistema jurídico é baseado em garantias, e uma das mais importantes é o princípio da legalidade tributária. Nenhum tributo pode ser cobrado sem que uma lei diga exatamente como, quando e por quê. Esse princípio existe para impedir que o Estado aja de forma arbitrária. Se trocarmos a lei clara e debatida por instruções técnicas, criadas em ambientes fechados e sem participação, estamos correndo o risco de perder uma das bases do Estado de Direito. Mais do que isso: estamos reduzindo o espaço do debate público. Estamos trocando decisões construídas coletivamente por decisões de máquinas, por comandos escritos por programadores que talvez nem saibam o impacto social e jurídico de suas linhas de código. O Direito deixa de ser uma construção humana, feita de princípios e valores, e vira uma simples ferramenta de controle técnico.

Isso não significa que devemos rejeitar a tecnologia. Ela pode — e deve — ajudar a tornar o Direito mais eficiente. Mas ela precisa servir ao ser humano, e não o contrário. Algoritmos devem ser usados como ferramentas, não como autoridades. Devem facilitar a aplicação da lei, não substituí-la. Essa distinção é essencial. Porque o que é eficiente nem sempre é justo. No trânsito, a automação pode salvar vidas. No campo fiscal, pode simplificar a burocracia. Mas, em nenhum desses casos, ela pode excluir o cidadão do processo. O contribuinte tem o direito de entender, de discordar, de questionar e de recorrer. E isso só é possível quando há transparência, diálogo e acesso à informação.

No fim das contas, o que Tercio nos mostra não é uma proposta pronta — é um alerta. Um convite à reflexão. Ele não diz que devemos abandonar a norma e abraçar a instrução. Ele apenas nos mostra que essa transformação já começou, e que precisamos pensar, com seriedade, sobre os caminhos que estamos tomando.

Porque, no Direito, nem toda instrução é legítima. Nem toda eficiência é justa. E só manteremos a justiça se não deixarmos que a tecnologia engula os princípios que nos trouxeram até aqui.

Autor: Marcelo Magalhães Peixoto